SENHOR CEM CABEÇAS

– Vamos descer pra floresta?

– Ah, não, Rô. Podemos fazer a atividade na sala…

– Mas eu preparei algo especial hoje, e vamos precisar da nossa floresta.

Rápida conversa.

Descemos. Alguns foram contrariados. Nesse retorno ao presencial, detectamos défict de natureza. É um comportamento novo, que estamos estudando. Crianças que passavam o dia todo na floresta agora expressam medo, estranhamento e até rejeição.

Sentamo-nos no Clubinho. Alguns se penduraram no pergolado. Outros se esparramaram no sofá.

A natureza agora causa neles provocações. É muito barulho, muito bicho, muito mato. Coça. Incomoda.

Eu começo a história. Escolhi Senhor Cem Cabeças.

– Rô, é cem de número, ou sem de “não tem”?

– A grafia indica número. Mas pode ser uma brincadeira literária do autor, trazendo um duplo sentido à palavra.

– Mas ninguém tem cem cabeças!

– Eu tenho! – provoquei, assim como a natureza.

E comecei a leitura.

O livro traz uma personagem que vai expressando vários sentimentos. Cada um deles é representado por uma máscara. São máscaras rituais de diversos cantos do planeta. Um primor!

Algumas máscaras fazem rir, outras assustam. E outras fazem pensar.

(Na leitura): – Quando fico emburrado…

– Alguém aqui fica emburrado?

As crianças respondem que sim, e contam rapidamente o que as deixam emburradas.

(Na leitura): …- fico triste!

– Vocês sentiram tristeza nessa quarentena?

E assim, visitamos muitos sentimentos. Bons e ruins. Lemos e conversamos, nos espantamos com as imagens, rimos, quase choramos. Pensamos…

Finda a leitura, propus que eles construíssem suas máscaras, usando o que encontrassem: folhas, galhos, pedras, flores.

Liguei a mangueira e molhei a terra. Uma criança pegou um balde para fazer lama.

As mãozinhas começaram a se sujar. Nos cabelos, folhinhas presas.

As máscaras expressavam os mais diversos sentimentos.

Medo, raiva, tristeza, alegria, felicidade, o fim do preconceito, paz, tédio. Uma máscara significava um sentimento secreto que a criança apenas confiou a mim e a seu amigo. Adolescentezice inocente da infância. Deixo a curiosidade pra vocês.

Eu observava o gestual. Crianças compenetradas no seu Fazer, enquanto expressam o seu Ser. Não dava pra saber se brincavam, faziam a atividade proposta pelo professor, ou se empenhavam no seu labor. Brincar é coisa séria!

Dois meninos riam enquanto faziam suas máscaras que expressavam sentimentos difíceis de lidar. Talvez as risadas fossem uma fuga para conseguirem materializar o mal, a tristeza e o tédio.

Outro menino se isolou para expressar seu sentimento oculto. Uma menina se afastava dos amigos, porque a sua conexão naquele momento era tão somente com a natureza.

E assim seus sentimentos foram expressados, e depois compartilhados.

A atividade terminaria em instantes.

– O que vamos fazer com essas máscaras?

– Podemos deixar para a natureza. Ofertem seus sentimentos para a floresta… – propus.

As crianças penduraram suas máscaras nas plantas e árvores, que corporificaram aqueles tantos sentimentos.

Saímos dali calmamente, com as mãos sujas e o coração aliviado.

Dois meninos que estavam relutantes em descer foram os últimos a sair.

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